Starry Night
O guardador das águas
1.
Era de noite.
De breu se vestiam os montes,
a face do céu.
Por onde
vagueasse o olhar,
velas cintilavam
nas cortinas do cansaço
que os dedos do vento
acariciavam.
2.
Era longa,
a noite.
Manta tecida e estendida
pelos campos
que desconhecidas mãos
regiam
ao ritmo das estações.
3.
Em casa,
no silêncio habitado da memória,
a lareira
cantava o destino
da madeira.
4.
O guardador das águas
mergulhava
serenamente a cabeça
entre as mãos,
de cotovelos crivados,
suspensos
nas ombreiras dos joelhos.
5.
Sentia os acordes do fogo,
suavemente,
navegando em suas veias.
6.
No seu olhar,
as chamas dançavam,
mas o seu destino era outro,
não este
de moldador do fogo.
7.
Guardava as águas,
desenhava-lhes o curso.
Sob o alcance do seu gesto,
o sussurrar das águas
na epiderme da terra,
na rude face das pedras,
a sede saciada
da terra cultivada.
8.
Ouve.
Desenha-se o gesto,
o corpo da enxada
ferindo
o frágil e fértil corpo
da terra.
9.
Libertos,
há cavalos no vento.
Ouvem-se na voz da brisa.
A tarde deita-se nos penedos,
aguarda o parto das estrelas,
dos cometas.
Os cavalos regressam,
relincham entre a folhagem.
10.
Escuta-os.
Iniciam o cântico da noite.
O nocturno despertar
de outras viagens.
11.
Cedo,
aprendera a arte de domar
a vertigem das águas,
a moldar
rigorosos sulcos
na face dos caminhos,
o afago das águas
correndo
montes,
trilhos
até à raiz
serena do pão.
12.
Sobre a mesa,
o mistério do vinho
e da broa,
do queijo e da azeitona.
O sabor das lágrimas
e dos risos.
O ritmo íntimo das vozes
no entoo da jorna.
13.
No côncavo das mãos,
iniciara o gesto.
Colhera a frescura
da nascente.
O verbo iluminado de um segredo,
de quem aprendeu
a adiar
o próprio destino.
14.
Sabia de uma guitarra
que aconchegava as vozes
nas noites de inverno.
Do vinho jorrando
em fontanários de madeira.
Dos corpos celebrando
a conjugação
das colheitas.
Não sabia do mar,
não partilhava o destino
dos rios.
O seu sonho era ficar.
Guiar a água
que guardava.
15.
A serpente ardia à boca da pedra.
Esta gemia
na lucidez da água.
A serpente mudara de pele.
Era agora
o corpo da água
pelo chão serpenteando.
16.
Ouve-se.
ao longe,
o cântico de um galo.
Entre montes,
abrem-se,
em preguiça,
os olhos do sol.
Seus braços esboçam,
tímidos,
o abraço ao lugarejo.
Este responde.
Acordam homens e utensílios.
A terra aguarda o cultivo
ou a colheita,
os caminhos de água
reabertos.
17.
Vão para os pastos os pastores,
os cães,
os rebanhos manhã dentro.
Vão rumo às arestas
do nascente.
Aos braços
da erva enamorada.
18.
Não há crianças aqui.
O verão as traz
e o verão as leva.
Foram
primeiro
com o árduo vento,
a fria neve,
a agreste terra.
Como as águas
rumo ao mar.
Como as aves
rumo ao pleno sol.
Ficaram as casas,
seus rituais ancestrais
e as pedras,
as pedras com memória.
19.
As pálpebras do círculo do fogo
tremem.
Sentem o peso das horas
do dia que declina.
O desejo
de se fecharem para o mundo.
De sentir
o feminino corpo da noite.
E fecundá-lo de estrelas,
do cântico dos grilos,
de sonhos.
20.
No cessar de cada tarde,
o guardador recolhia
os artefactos do rigor
com que tecia o destino das águas.
Sentava-se junto à árvore
que plantara
ainda criança.
Seu olhar repousava
no limiar do horizonte.
Amanhã,
sabia,
o sol iria brilhar.
21.
Era o tempo
do sereno
recolher das aves.
Nas folhas de outono
se desenhava o seu voo.
Em breve,
chegaria a chuva,
o frio,
a neve.
Em breve,
o borralho aquecendo a solidão.
22.
Chegara ao fim do caminho.
O preso cabelo do vento
soltara-se.
Ondulava no dorso dos montes.
Sente-se nos cascos
apressados
do poente.
Xavier Zarco
Um comentário:
Extensivamente bonito.
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